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REALIDADE E REAL

A realidade versus o real – apesar das diferenças, estas duas palavras são frequentemente confundidas uma com a outra. A sua aparente interpermutabilidade exige uma clarificação imediata. Neste artigo, estabeleço a distinção entre realidade e real no campo da arquitectura de uma forma que evoca a distinção de Immanuel Kant, exposta na sua Crítica da Razão Pura, entre fenómenos e númenos, isto é, entre objectos e acontecimentos tais como os percebemos e objectos e acontecimentos tais como verdadeiramente são. Aqui, a realidade dirá respeito ao mundo tal como o entendemos, enquanto o real designará o mundo visto independentemente de nós, ou como fonte original do que aparenta ser. Mas por que razão recorrer a esta distinção, especialmente para tratar de design digital e do seu pretenso realismo? Para os designers contemporâneos, ser realista significa normalmente estar de acordo com a realidade normal, estar “ligado” à textura densa do mundo tal como o entendemos e não estar relacionado com um qualquer nível mais profundo, possivelmente desligado da experiência física. Neste artigo, defenderei que a necessidade de tal distinção tem origem na dificuldade em atribuir um escopo claro à arquitectura enquanto produção artística ou, em termos mais gerais, cultural. Confrontada com esta dificuldade, a disciplina da arquitectura tem tentado constantemente transmitir algo sobre a estrutura subjacente que permite que os fenómenos se manifestem perante nós. Ao contrário de Kant, que postulou o carácter incognoscível dos númenos, os designers tendem a acreditar que é possível expressar algumas das suas propriedades, pelo menos em termos da arquitectura. Enquanto a filosofia tem de parar em determinado ponto, dadas as limitações inerentes à linguagem; a arquitectura sustenta poder continuar, graças à sua relação íntima com a matéria.

Para um historiador pós-estruturalista é claro que não existe nenhum real totalmente objectivo e atemporal. Tal como a realidade, o real, ou melhor aquilo que partimos do princípio que ele pode ser, é em grande medida um constructo cultural dependente de variadas condicionantes históricas e culturais. Nesta perspectiva, a história da arquitectura revela a existência de uma série de concepções do real, desde a crença de Vitrúvio numa ordem arquitectónica que governava o mundo, até versões mais contemporâneas da existência de tais princípios de organização. O presente artigo é dedicado a uma das mais recentes versões do real, mais propriamente aquela que tem sido expressa pelo design digital a partir do início dos anos 1990. O desenvolvimento da arquitectura digital é de facto inseparável de uma série de pressupostos fundamentais sobre aquilo que constitui o mundo. Apesar de variações importantes entre os vários protagonistas da história, não deixamos de nos surpreender pela convergência das suas intuições em relação a algumas das características fundamentais do real.

Ainda que muito recente, esta busca pelo real assinala um novo episódio numa já longa história. Esta história tem as suas raízes, como afirmei, na permanente dificuldade em definir os objectivos da arquitectura para além do utilitarismo dos edifícios. Enquanto produção artística, a arquitectura teve sempre mais dificuldade do que as restantes belas-artes em identificar os seus princípios fundamentais. Durante muito tempo, essa dificuldade foi interpretada com o enquadramento fornecido pela teoria da imitação dominante. Ao contrário da pintura ou escultura, a arquitectura não imitava directamente as formas da natureza. O seu verdadeiro alcance e significado encontravam-se alhures, a um nível mais profundo, onde as leis da natureza se encontravam com as da ordem especial e da proporção. Era essa a convicção expressa ao longo do início do período moderno por teóricos e praticantes que proclamavam a sua inspiração em Vitrúvio. A maioria teria concordado prontamente com a afirmação do teólogo francês Jacques-Bénigne Bossuet de que Deus criara o mundo como um arquitecto ao dar-lhe ordem e proporção.1 Esta crença explicava igualmente o interesse de muitos deles nas proporções supostamente dadas por Deus ao Templo de Jerusalém.2 Mais que tudo, tais proporções eram vistas como uma expressão directa do real, em contraste com a mera realidade experiencial.

Embora a evolução artística do século XX tenha conduzido ao abandono da teoria da imitação, a identificação do verdadeiro escopo da disciplina da arquitectura continuou a constituir um problema. A arquitectura não alcança habitualmente o mesmo grau de evidência expressiva das outras artes. A sua expressividade discreta é muitas vezes equiparada a uma agenda pouco clara, na qual as preocupações utilitárias encobrem outro tipo de preocupações. Mas apesar de todas as tentativas para “desconstruir” a disciplina e as suas produções, há algo na arquitectura que permanece distintamente fundamental, algo que parece apontar para um estrato situado sob a experiência imediata, em direcção a um qualquer substrato que torna possível a realidade sensorial. Tal substrato tem provavelmente que ver com o corpo, concebido como estrutura que transforma a experiência sensorial num todo coerente. Isso representa o derradeiro nível da realidade a que podemos aceder pela intuição sensorial, daí a tentação de considerá-lo muito próximo do real.

Assim, a questão do real na arquitectura é a um tempo esquiva, ou mesmo arriscada na medida em que pode parecer desnecessariamente idealista, e inevitável enquanto meio de a disciplina justificar a sua pretensa relevância cultural. De modo a evitar a viragem idealista, uma possível interpretação do que constitui verdadeiramente o real é considerá-lo o nível mais fundamental em que a arquitectura se relaciona com o imaginário social. Enquanto produção artística e cultural, a arquitectura está claramente relacionada com o imaginário social, quer dizer, as várias referências partilhadas com as quais uma dada sociedade constrói um enquadramento comum para compreender os problemas que lhe interessam. A interacção da arquitectura com o imaginário social serve de contrapeso ao seu carácter fundamentalmente abstracto. Mesmo se o Instituto do Mundo Árabe de Jean Nouvel, em Paris, não representa nada de específico, a sua fachada transmite uma impressão de déjâ-vuque remete simultaneamente para imagens de muxarabis da arquitectura islâmica, mecanismos gigantescos de abertura de câmara e chips de computador. 

Tal como o seu nome sugere, as imagens, sejam elas visuais ou retóricas, desempenham um papel decisivo no imaginário social. Mas de acordo com o filósofo grego Cornelius Castoriadis, é simultaneamente possível duvidar de que elas representem os seus verdadeiros alicerces. Para Castoriadis, o imaginário social está em última instância organizado em torno de figuras, ou antes, de estruturas que estão relacionadas com intuições básicas que dizem respeito, por exemplo, ao espaço e tempo.3 O real que estamos aqui a tentar imaginar pode definir-se como o mundo que é o alvo dessas intuições.

Mau grado o seu papel central na organização geral do imaginário social, estas intuições não correspondem necessariamente ao que o senso comum pode sugerir. Antes pelo contrário, estando no centro do imaginário social, elas muitas vezes representam uma perturbação ao que é sugerido pela experiência quotidiana. O real não deve ser apenas o alicerce da realidade; ele sintetiza igualmente a sua capacidade de mudança.

Quando os arquitectos tentam articular algo sobre este mundo por outros meios que não os seus projectos, usam frequentemente referências científicas e filosóficas.4 Os designersdigitais contemporâneos, por exemplo, estão sempre prontos a referir a teoria dos sistemas dinâmicos da filosofia de Gilles Deleuze. Para além da artificialidade e dos vários equívocos que comprometem muitas destas tentativas de relacionar a arquitectura com a ciência e a filosofia, elas são apesar de tudo importantes para a disciplina da arquitectura na medida em que a confrontam de novo com a questão das raízes da vida quotidiana. A arquitectura não pode apenas ser realista; tem de enfrentar a sua ambição de lidar com o real.

 

UM MUNDO CONTÍNUO

A mais importante característica do real à qual os designers digitais se referem explícita ou implicitamente é o seu carácter contínuo. É de realçar que esta característica estava já presente nas reflexões de Greg Lynn alguns anos antes de voltar a sua atenção para os computadores. Afirmando inspirar-se no célebre ensaio de Deleuze, A Dobra: Leibniz e o Barroco, no seu manifesto de 1993 sobre “a dobra na arquitectura”, defendia a continuidade, a suavidade e a curvilinearidade como alternativas à abordagem fragmentada e conflituosa seguida pela arquitectura desconstrutivista.5 Por detrás desta orientação formal estava a crença num mundo de variações contínuas que levavam de uma coisa ao seu contrário. Dosblobs iniciais ao recente design paramétrico, a arquitectura digital tem seguido fielmente esta agenda de “transformação suave envolvendo uma integração intensa das diferenças num sistema contínuo e ao mesmo tempo heterogéneo.”6 Ainda que a leitura da sua obra fosse muitas vezes superficial, para não dizer mais, Deleuze representava uma referência crucial para os defensores da suavidade, na medida em que a sua filosofia podia ser interpretada como “uma vasta hermenêutica da continuidade,”7 para utilizar a caracterização retrospectiva de Mario Carpo do momento da dobra na arquitectura. Para além da filosofia de Deleuze, teorias científicas como a topologia e a morfogénese representavam igualmente referências cruciais para Greg Lynn e seus colegas.

O facto de o momento da dobra ter chegado antes do computador e, contudo, ter definido numa perspectiva de longo prazo a utilização de ferramentas digitais na arquitectura é revelador das limitações do determinismo tecnológico. Segundo Carpo, mais uma vez, temos de admitir que “os computadores per se não impõem formas, nem articulam preferências estéticas.”8 A arquitectura digital não é uma mera consequência da introdução da tecnologia digital no campo do design a partir de meados da década de 1990. Parece ser antes o resultado da convergência entre uma evolução da disciplina influenciada pela cultura em geral e as novas possibilidades abertas pela computorização.

Uma outra forma de nos distanciarmos do determinismo tecnológico é observando a brecha, ou mesmo a discrepância, entre a natureza fundamentalmente descontínua dos procedimentos digitais e a forma como têm sido mobilizados pelos arquitectos para transmitir a intuição de um real contínuo. Enquanto a música digital é sinónimo da substituição de sinais discretos por modulação contínua, a arquitectura digital parece avançar na direcção oposta. As formas “elegantes” defendidas por teóricos e designers como Ali Rahim ou Patrik Schumacher são de facto baseadas em transições ao invés de saltos.9

Isto, porém, não significa que a música digital esteja em maior acordo com a concepção do real hoje prevalente que a arquitectura. Pois a codificação discreta implícita na utilização de ferramentas digitais já não está relacionada com o pressuposto epistemológico de que o mundo segue os mesmos passos discretos. A nova direcção seguida pelas ciências da vida contemporâneas representa bem esta evolução, com as várias críticas dirigidas à interpretação do cérebro enquanto computador gigante, isto é, uma discreta máquina estatal segundo o modelo estabelecido por Turing, e o surgimento de importantes reservas à interpretação do ADN enquanto informação pura. As ciências da vida são de facto emblemáticas da possibilidade de obtermos todo o tipo de resultados através de procedimentos análogos à codificação e descodificação, reconhecendo ao mesmo tempo que a noção de código é inadequada para caracterizar o que a natureza faz realmente. A arquitectura digital parece ser o eco desta abordagem; com as suas suaves transições negociadas com a ajuda de um computador, produz formas que não podem ser reduzidas aos códigos que lhes dão origem.

Viver num mundo contínuo acarreta vastas repercussões. Estas dizem respeito à noção de espaço, à forma como os objectos têm de ser concebidos, bem como à relação entre o sujeito humano e o ambiente que o rodeia. Em primeiro lugar, o espaço não pode já ser apreendido como um contentor passivo. Longe de ser passivo, apresenta-se animado por campos, gradientes e fluxos, de uma forma que tende a esbater a distinção entre o não-orgânico e o orgânico. No real de hoje, a continuidade segue a par de uma animação omnipresente que já não é monopólio da vida orgânica.

Estes campos, gradientes e fluxos dão origem a máximos e mínimos locais bem como a aglomerados provisórios. Máximos e mínimos locais produzidos por processos tais como a inflexão, a operação matemática por trás da dobra, aglomerados reminiscentes dos rizomas de Gilles Deleuze ou das redes híbridas de Bruno Latour: são estas as novas entidades estruturais que constituem o real do presente. Isto implica uma mudança fundamental na forma como devemos pensar os objectos. Enquanto os objectos tradicionais tinham tendência para permanecer em magnífico isolamento, estas novas entidades nunca são completamente dissociáveis das condições que as rodeiam.

O facto de a arquitectura digital estar relacionada com esta concepção pode a princípio parecer paradoxal, dado o carácter hiperformalista de muitas das suas produções, do Centro Phaeno, de Zaha Hadid, ao HydraPier, do gabinete Asymptote. Mas a preocupação com a forma, patente em muitos dos designers contemporâneos, é muitas vezes acompanhada pelo abandono simultâneo de qualquer tipo de fé na sua potencial perfeição. Nada é mais contrário ao formalismo digital que o idealismo platónico. Uma das razões disso encontra-se no facto de o software de modelação e a estrutura de cálculos em que assenta produzirem normalmente uma série contínua de superfícies e volumes, algo mais próximo de um fluxo geométrico ou película obtidos a partir de deformação directa ou variação paramétrica que de uma configuração fixa. Em tal contexto, a forma surge como um momento num fluxo, ou um instantâneo obtido pelo congelamento da geometria em movimento. Longe de flutuar no mundo das ideias puras, é algo inseparável do seu processo de produção assistida por computador.

Por entre as consequências desta nova situação, encontramos a possibilidade de considerar a forma como algo que surge enquanto ocorrência ou acontecimento, ao invés de a vermos como uma substância estática. Esta possibilidade poderá muito bem ser fulcral na tendência actual de interpretar a arquitectura como uma arte performativa.10 Para além de qualquer performance tecnológica, para além do seu efeito ou antes do afecto que provoca, o que a arquitectura contemporânea faz é emergir como um instante num conjunto de possibilidades teoreticamente ilimitadas, reveladas pela modelação por computador e pelo designparamétrico.11

As obsessões formais do design digital e a sua simultânea distanciação da concepção tradicional de forma arquitectónica enquanto substância convergem na nova importância dada à superfície. Mais que os volumes, as superfícies parecem trazer a marca dos processos computorizados que as criam, um argumento tornado claro por Georges Liaropoulos-Legendre no seu ensaio ijp: The Book of Surfaces.12 Enquanto os volumes parecem arbitrários e, pela mesma razão, algo opacos e inertes, as superfícies surgem como uma expressão mais genuína das variações paramétricas. Por outras palavras, as superfícies são mais naturalmente animadas. (Ilustração 8)

As superfícies parecem igualmente desafiar a diferença nítida tradicionalmente articulada entre o objecto arquitectónico e o que o rodeia. Isso explica a recente multiplicação de projectos que esbatem a fronteira entre arquitectura e solo, arquitectura e paisagem, uma tendência exemplificada por realizações tais como o Museu Paul Klee de Renzo Piano, em Berna, Suíça, o Museu Colecção Liaunig de Odile Decq, em Meuhaus, Áustria, ou o Parque da Cultura de Denia, de Vicente Guallart, em Espanha.

O privilégio dado às superfícies também está relacionado com a última e talvez mais essencial consequência de um real contínuo, a saber, a necessidade de ultrapassar a noção de uma separação nítida entre o sujeito humano e as coisas não humanas que o rodeiam. Em muitos projectos contemporâneos, pretende-se que a pele da arquitectura fale directamente aos sentidos de uma forma quase táctil, que deixa o sujeito incerto sobre os limites da sua sensibilidade e o início da realidade exterior.13 Através de práticas muitas vezes apelidadas de “ornamentais”, a abordagem da arquitectura digital à superfície ou pele está relacionada com a importância da sensação, ou antes, do sensório entendido como um contínuo holístico que faz a ponte entre afectos e a sua causa.14 Nesta perspectiva, a presença da arquitectura tradicional é substituída por uma omnipresença do afecto que é ainda mais desconcertante para o leigo do que as estranhas formas das geometrias digitais alternativas.

A par dos textos de Gille Deleuze, os ensaios de Bruno Latour representam outro conjunto de referências para os que tentam compreender o que significa hoje a continuidade entre o humano e o não humano.15 Mais recentemente, pelo menos na Europa, a filosofia da interioridade de Peter Sloterdijk, começou a penetrar o discurso dos designers por razões semelhantes. Na verdade, o primeiro volume da sua trilogia Spheres insiste no facto de termos de considerar a subjectividade um fenómeno espacial que se estende para além da fronteira do corpo.16

A relação entre a arquitectura digital e a concepção de um sujeito humano em continuidade com o ambiente em seu torno não deveria surgir como uma surpresa, na medida em que, na verdade, representa uma das malhas que liga o início da cultura computorizada à era digital do presente. O tema fora já explorado pela cibernética. Em particular, a obra de 1973 Steps to an Ecology of Mind, de Gregory Bateson, punha já em causa a noção tradicional da interioridade humana.17 Em relação directa com o mundo do design, alguns dos seus argumentos fundamentais foram reformulados recentemente por William Mitchell no ensaio Me : The Cyborg Self and the Networked City, em que evoca a deslocação parcial do sistema nervoso através de meios electrónicos.18

Do espaço animado à distribuição sensorial e até à subjectividade, podemos interrogar-nos sobre o que a fé na continuidade representa na prática para os designers. Na arquitectura, até as mais etéreas referências filosóficas e científicas correspondem geralmente a estados concretos. Uma primeira resposta pode residir no desejo de estar em consonância com as várias forças e campos revelados por processos como a globalização. (Ilustração 10) Em vez de nos rebelarmos contra estas forças e campos, temos de aceitar a sua inevitabilidade, uma aceitação que poderá levar à sua subversão a partir de dentro. Este desejo encontrou uma das suas expressões mais assinaláveis na produção teórica de Koolhaas, em particular no seu ensaio sobre a “cidade genérica.”19 Em muitos casos, foi considerado sinónimo de um novo materialismo que repudiava qualquer vestígio do dualismo entre a mente e a matéria ou entre objecto e sujeito, uma posição sintetizada nos textos de Sanford Kwinter.20

Mais recentemente, a busca pela sustentabilidade revigorou mais ainda esta concepção. Das emissões de dióxido de carbono às políticas que possibilitem a sua limitação, cada vez mais tudo parece estar ligado continuamente no “planeta azul”, uma continuidade que roça a redundância e que dá total relevância à filosofia da interioridade de Sloterdijk. Neste contexto, a possibilidade de uma continuidade forte entre sujeito e objecto, ou humano e não humano, para utilizar uma das oposições preferidas de Latour, foi reformulada.

Para os designers digitais, um real contínuo é também importante na medida em que fornece sustentação a fenómenos como a complexidade e a emergência. A complexidade, muitas vezes equacionada com a não-linearidade, está entre as características chave dos sistemas em que estes designers estão interessados. Na maioria destes sistemas a complexidade está associada à propriedade da emergência. Michael Hensel, Achim Menges, e Michael Weinstock definem emergência como “uma explicação de como os sistemas naturais evoluíram e se autossustentaram, e um conjunto de modelos e processos para a criação de sistemas artificiais que são concebidos para produzir formas,”21 definição que se afigura muito prometedora. Através do uso do computador, os designers tentam emular a capacidade dos sistemas naturais de gerar ordem visível. A emergência surge ainda mais aliciante ao parecer profundamente não-contingente. Na busca de justificação para as formas que surgem nos seus ecrãs, os arquitectos digitais podem ser tentados a apresentá-las como o resultado óbvio de um processo de emergência.

Para além de Deleuze, Whitehead está entre as referências filosóficas que é frequente ver mobilizadas para dar conta da tónica posta na complexidade e emergência. É um facto que Whitehead via o mundo como estando fundado em processos e não em substâncias.22 Nessa perspectiva, que Kwinter e outros gostam de caracterizar como um novo e radical materialismo, a emergência surge como uma propriedade fundamental partilhada tanto pela natureza como pelo design.

 

 OS PERIGOS DA MAGIA

Tal como o descrevemos, o real está cheio de sedução, com os seus campos e gradientes invisíveis e os seus constantes processos de criação. Mas, ao mesmo tempo, apresenta um número de riscos que estão longe de poder ser negligenciáveis. O primeiro diz respeito ao seu alheamento da realidade ordinária. Mesmo se, em última análise, a natureza for composta por processos nós continuamos a viver as nossas vidas quotidianas num mundo deveras substancial.

Esta distância é muitas vezes acompanhada pela sensação confusa de que há algo de distintamente mágico na esfera do real. Padrões e formas emergentes possuem esta faceta mágica. Em termos mais genéricos, desde os inexplicáveis bloqueios de sistema que atormentam os utilizadores de computadores, às figuras imprevisíveis que aparecem nos ecrãs, o digital afigura-se inseparável de todos os tipos de ocorrências e acontecimentos aparentemente mágicos. Este carácter mágico é reforçado pelos comportamentos quase supersticiosos que tendem a desenvolver-se como resposta possível a estas ocorrências e acontecimentos, como o teclar ou seleccionar irracionalmente para reiniciar o sistema, ou executar variações ritualísticas de uma sequência de acções cujos resultados não foram compreendidos mas se afiguram profundamente satisfatórios. Por outras palavras, quando confrontados com o mundo digital, não usamos apenas software e scripts, mas também receitas e até feitiços. Quanto aos próprios computadores e redes, não há dúvida que não são tão transparentes como os seus promotores gostariam que pensássemos. Repositórios de informação há muito esquecida, perdida nas suas várias camadas como livros inadvertidamente deixados em pilhas numa biblioteca gigantesca, os computadores são propensos a comportamentos apenas explicáveis devido a essa subliminar memória digital. Por outras palavras, são máquinas assombradas, sejam os seus fantasmas anteriores versões de software ou preferências não apagadas de antigos utilizadores.

Um mundo mágico é um mundo que tende a preferir o mito à história. É extraordinário observar como a arquitectura digital permanece geralmente alheia à dimensão histórica, como se os homens e mulheres a que se destinava vivessem num eterno presente. A falta de uma clara perspectiva histórica tem o seu contraponto no sentimento confuso de que entrámos numa nova esfera encantada, sob a égide de mitos fundamentais como o alegado colapso da distância causado pelas comunicações electrónicas.23 Para além de todos os mistérios com que somos confrontados na nossa utilização diária dos computadores e redes, são tantos os livros e revistas que nos entretêm com os milagres da era digital — o último dos quais é sobre o que a conectividade generalizada, as redes sociais e os blogues conseguem alcançar — que é difícil resistir à impressão de magia.

Está claro que seria uma pena descartá-la por inteiro. Tal como a infância, com a qual é frequentemente associada, a magia oferece recompensas únicas. Umas das contribuições de uma disciplina como a arquitectura pode muito bem ser pôr em evidência os seus perigos, mantendo o essencial do seu encantamento. De forma a atingir esse objectivo, a arquitectura digital poderá ter de apontar simultaneamente para o novo real que está presentemente a explorar e para uma realidade mais tradicional que está, pelo menos num nível puramente teórico, em discrepância com ele.

 

TRANSFIGURANDO A REALIDADE

A arquitectura está habituada a este tipo de desafio. Por entre as complexidades do designinovador encontra-se, por exemplo, a necessidade de acomodar utilizações presentes ao mesmo tempo que se prepara o caminho para uma vida diferente. Uma outra forma de colocar a questão é dizer que a arquitectura diz tanto respeito à ideologia, cujo objectivo é estabilizar as práticas sociais e sistemas de fé existentes, como à utopia, que propõe alternativas radicais a essa práticas e sistemas. A dualidade realidade/real funciona de modo semelhante. Por um lado, a disciplina da arquitectura tem de se mover no enquadramento da experiência do dia-a-dia; por outro lado, tem de a desafiar de forma a responder ao apelo do real. Deixem-me notar de passagem que a tensão entre realidade e real está em parte relacionada com a questão do virtual. Como apelo a uma visão do mundo mais profunda do que aquilo a que o senso comum chama realidade tangível, o real representa uma promessa, uma virtualidade.

Ora hoje não é, certamente, a primeira vez que esta tensão se fez sentir no mundo da arquitectura. A tradição vitruviana estava já marcada pelo fosso entre as necessidades e usos dos primeiros habitantes modernos da Europa e os princípios greco-romanos expostos em Dez livros sobre a arquitectura. Este fosso explica a razão por que os arquitectos do Renascimento e Barroco podiam simultaneamente seguir as técnicas de construção e as disposições das suas épocas e países respectivos, afirmando ao mesmo tempo obedecer a regras elaboradas cerca de mil e quinhentos anos antes, num contexto completamente diferente. Embora os princípios vitruvianos sobre a ordem e proporção tenham frequentemente sido interpretados como um conjunto de receitas estáticas, eles representavam, na verdade, um factor de evolução no início da arquitectura moderna. A distância a que se encontravam das técnicas e receitas de disposição criou um espaço para combinações inovadoras. Em termos mais gerais, tal como a utopia, o real está do lado da mudança em nome de uma ordem das coisas que vai mais fundo que os usos quotidianos.

A analogia entre este tipo de tensão e a oposição entre ideologia e utopia não deverá levar, dada a má reputação normalmente associada à ideologia, ao menosprezo da realidade em favor de uma busca do real. A adesão da arquitectura à realidade representa uma parte essencial da sua identidade. Fixa-a ao mundo material com as qualidades específicas do peso, opacidade e inércia. Por outras palavras, a arquitectura não pode apenas servir a causa da mudança; tem também de resistir ao movimento. Algo paradoxalmente, é esta mesma resistência que lhe permite agir. Sem a realidade, a arquitectura estaria perdida no universo da especulação em vez de estar ligada à acção, à transformação concreta do ambiente.

Nesta perspectiva, o papel da busca do real poderia ser transfigurar a realidade, por forma a que o seu potencial para a mudança se revele através das suas características aparentemente imutáveis. No caso da arquitectura digital, o problema não está apenas em anunciar o advento de um mundo estranhamente contínuo, cheio de propriedades fascinantes tais como a complexidade e a emergência. Está também em reconciliar esse mundo com as categorias da experiência quotidiana, começando pelo sentimento que ainda temos de ser distintos do que nos rodeia, de sermos pessoas no sentido tradicional e não redes de estímulos e afectos.

Num dos seus livros, o romancista americano Richard Powers coloca esta mesma questão da reconciliação entre as visões tradicionais e emergentes de nós próprios. Confrontado com um caso enigmático de distúrbio mental, um dos protagonistas do romance, um psiquiatra chamado Weber, entrega-se a uma meditação sobre a forma como a ciência entende o cérebro.

“Ele já sabia como era: através da história, o cérebro fora comparado à tecnologia mais avançada então predominante: máquina a vapor, central telefónica, computador. Agora, quando Weber se aproximava do seu zénite profissional, o cérebro tornara-se a internet, uma rede de distribuição, mais de duzentos módulos em conversa solta e mutualmente modificadora com outros módulos.”

Reconhecendo quão desconcertante tal visão pode parecer, mesmo para um especialista no assunto, Powers prossegue:

“Alguns dos emaranhados subsistemas de Weber aceitavam o modelo: outros queriam mais. Agora que a teoria modular ganhara ascendência sobre quase todo o pensamento sobre o cérebro, Weber regressava às suas origens. Naquele que seria certamente o estádio final do seu desenvolvimento intelectual, ele esperava agora encontrar, na mais recente e sólida neurociência, processos que pareciam a velha psicologia do profundo: repressão, sublimação, negação, transferência. Esperava encontrá-los num qualquer nível para além do módulo.”24

Para lá da aprovação entusiástica do novo mundo de campos, gradientes e fluxos que rodeiam e penetram o sujeito contemporâneo, uma das tarefas mais urgentes que aguarda a arquitectura digital talvez seja a reinvenção de princípios fundamentais que possam fazer sentido na vida quotidiana, ajudando assim indivíduos e grupos a reconstruir uma identidade coerente. |

 

 

* Artigo originalmente publicado em Matthew Roman, Tal Schori (eds.), Perspecta 42: The Real. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, Abr. 2010, p. 147-15.

 

1 Jacques Bénigne Bossuet, Introduction à la Philosophie, ou de la Connaissance de Dieu, et de Soi-Mesme (Paris: R.-M. d’Espilly, 1722), p. 37-38.

 

2 Ver Joseph Rykwert, On Adam’s House in Paradise: The Idea of the Primitive Hut in Architectural History (New York: Museum of Modern Art, 1972).

 

3 Ver em particular Cornelius Castoriadis, The Imaginary Institution of Society (Paris, 1975, tradução inglesa Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1998). 

 

4 Cf. Antoine Picon, “Architecture and the Sciences: Scientific Accuracy or Productive Misunderstanding?”, in Akos Moravanszky, Ole W. Fischer (eds.), Precisions: Architecture between Sciences and the Arts, (Berlin: Jovis, 2008), p. 48-81.

 

5 Gilles Deleuze, The Fold: Leibniz and the Baroque (Paris, 1988, tradução inglesa Minneapolis: University of Minnesota Press, 1993); Greg Lynn, “Folding in Architecture”, Architectural Design, (London, 1993, revised edition London: Wiley-Academy, 2004).

 

6 “Architectural Curvilinearity: The Folded, the Pliant and the Supple”, in Greg Lynn (ed.),op. cit., p. 24-31, p. 24 em particular.

 

7 Mario Carpo, “Ten Years of Folding”, in Greg Lynn (ed.), op. cit., p. 14-19, p. 14 em particular.

 

8 Ibid., p.16.

 

9 Ali Rahim, Hina Jamelle (eds.), “Elegance”, Architectural Design, January-February 2007.

 

10 Ver por exemplo Branko Kolarevic, Ali M. Malkawi (eds.), Performative Architecture: Beyond Instrumentality (New York, London: Spon Press, 2005).

 

11 Explorámos esta questão com mais detalhe em Antoine Picon, “Architecture as a Performative art”, in Yasha Grobman, Eran Neuman (eds.), Performalism. Form and Performance in Digital Architecture (Tel Aviv: Tel Aviv Museum of Art, 2008) p. 18-23.

 

12 Georges Liaropoulos-Legendre, ijp: The Book of Surfaces (London: Architectural Association, 2003).

 

13 Ver sobre esta questão Andrew Payne, “Surfacing the New Sensorium”, in Praxis. Journal of Writing Building, n° 9, 2007, p. 5-13.

 

14 Cf. Farshid Moussavi, Michael Kubo, The Function of Ornament (Barcelona: Actar, 2006); Ali Rahim, Catalytic Formations: Architecture and Digital Design (London and New York: Taylor and Francis, 2006).

 

15 Ver por exemplo Bruno Latour, We Have Never Been Modern (Paris, 1991, tradução inglesa Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1993).

 

16 Ver por exemplo Branko Kolarevic, Ali M. Malkawi (eds.), Performative Architecture: Beyond Instrumentality (New York, London: Spon Press, 2005).

 

17 Sobre o papel seminal desempenhado por Bateson, ver Céline Lafontaine, L’Empire Cybernétique. Des Machines à Penser à la Pensée Machine (Paris, Le Seuil, 2004).

 

18 William J. Mitchell, Me : The Cyborg Self and the Networked City (Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2003).

 

19 Rem Koolhaas, “La Ville générique”, in R. Koolhaas et al., Mutations (Bordeaux: Actar, 2001).

 

20 Ver por exemplo Sanford Kwinter, Far from Equilibrium. Essays on Technology and Design Culture (Barcelona, New York: Actar, 2008).

 

21 Michael Hensel, Achim Menges, Michael Weinstock, “Emergence in Architecture”, in Michael Hensel, Achim Menges, Michael Weinstock (eds.), “Emergence: Morphogenetic Design Strategies”, Architectural Design, May-June 2004, p. 6-9, p. 6 em particular.

 

22 Alfred North Whitehead, Process and Reality: An Essay on Cosmology (Cambridge, 1929, nova edição New York: Free Press, 1978).

 

23 Ver por exemplo Vincent Mosco, The Digital Sublime. Myth, Power and Cyberspace(Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2004).

 

24 Richard Powers, The Echo Maker (New York: Picador, 2006), p. 190.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


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